terça-feira, 30 de outubro de 2007

Apenas mais um dia


O Sol entrou pela clarabóia do meu quarto, que se localizava num sótão qualquer, numa cidade sem importância a referir. Aqueles raios que despertavam as partículas de pó dos meus moveis, fizeram também com que instintivamente os meus olhos se abrissem para mais um dia de existência mundana, mais um dia normal.

Levantei-me da cama, lançando para longe os lençóis que rudemente tapavam o velho colchão. O sótão era claustrofóbico, com apenas um compartimento que servia tanto de sala, como de quarto ou mesmo cozinha. Espreguiçando-me, peguei numa fatia de piza esquecida em cima da mesa redonda e dei-lhe uma dentada, ao mesmo tempo que me sentei na única cadeira disponível nesta pseudo casa. Com um olho fechado devido à agressividade do Sol, olhei para rua para ver a roupagem das pessoas que passavam. “Estará frio?”, questionei-me.

Ao longe, o comboio marcava um compasso sonoro que, como que me hipnotizando, fazia com que todas as minhas atenções se dirigissem para aquela grande máquina de barulho contínuo. Não obstante, o meu ligeiro estado hipnótico depressa foi interrompido pelo barulho dos carros, que ano após ano, vieram alterar a música urbana da minha zona. Um e outro acidente pontual, acompanhados com velozes ambulâncias, apenas fazem com que esta pauta musical seja preenchida cada vez mais, tornando-se por vezes quase impossível captar a essência musical do nosso Mundo sem o Homem. Esses acidentes arrepiam-me, pois já não é a primeira vez que perco alguém próximo, como resultado desta massiva industrialização. Abanando a cabeça para tentar expulsar estas ideias negativas, olho para o meu relógio de parede que marcam as 10 horas. “Bolas, já é tarde”.

Vesti rapidamente uma camisola que estava em cima de um monte de roupa que, sinceramente, não sabia ao certo de estava suja ou lavada. “Não importa”. Enfiando a mão nesse mesmo monte de roupa, puxei por umas calças que vesti rapidamente. O casaco comprido estava deixado à entrada, coloquei-o e abri a porta que gemeu gravemente e depois saí.

Ao arrastar a porta de entrada do meu prédio, uma lufada de ar gelado bateu contra a minha cara e como resposta a isso, aconcheguei o meu casaco e retirei do seu bolso o meu cachecol. Isabel, uma vizinha minha, estava a chegar ao mesmo tempo que eu saia. Delicadamente, abri-lhe a porta. Ela vinha ao telefone e a rir histericamente, os seus risos sempre foram altos demais, mas como tinha acabado de acordar pareciam verdadeiras flechas directas à minha cabeça. Trazia um carrinho de bebé e um saco de compras. A conversa parecia ser realmente interessante, pois nem ligava aos berros do seu filhinho que conseguiam ser mais agudos do que as gargalhadas da sua mãe. “Quem sai aos seus...” e ri-me.

O dia estava exactamente como eu gostava. Um sol agradável, acompanhado por um frio de meter o queixo a tremer. Decidi passar pelo parque para ver os primeiros sinais do Inverno na Natureza. Gostava de ver aquela natureza morta, melancólica, que era realçada com pequenos arbustos de azevinho, com as suas belas bagas vermelhas que eram realçadas pela humidade existente no ar.

Entre os arbustos existia escondido um pequeno lago com uma estranha folhagem verde. Na sua beira, estava uma criança por volta dos sete anos, que perseguia grandes sapos que coaxavam fortemente. Eram uns seis e saltavam fugindo do jovem rapaz, como que brincando com ele. O miúdo fazia um som estranho, parecia que estava a imitar o coaxar dos sapos. Criou-se ali uma curiosa linguagem que não era mais que um delicioso e ingénuo cântico que me deu prazer em observar.

O pequeno começou agora a fugir, não dos sapos, mas da chuva que começou de forma repentina quebrando tal belo jogo. “Que chatice, odeio chuva!” pensei. Comecei a correr saindo do parque, em direcção a uns prédios localizados mesmo em frente. Essa série de prédios antigos eram acimados com pombas que pareciam nem notar esta forte chuva. Em baixo vi que o café que costumo frequentar estava aberto, e o Senhor António acenava para mim, chamando-me. “Corra, Corra!”, gritou ele. Entrei no café, sacudindo a cabeça e colocando o meu casaco pendurado no bengaleiro à entrada. O café era pequeno, com não mais de 10 mesas, tinha um pequeno balcão onde a mulher o Senhor António estava sempre ora a servir, ora a ver mais um programa da National Geographic que tanto gostava! Pedi um chocolate quente com canela, uma especialidade do dono do café. Olhei para a antiga televisão que estava perto do balcão e vi que estava a passar um programa sobre uma espécie marinha qualquer. A Dona Maria era ligeiramente surda o que fazia com que a televisão tivesse sempre o seu som demasiado alto. O som do mar do programa era estrondoso naquele minúsculo café e fazia com que os pomposos copos de cristal numa prateleira em cima vibrassem constantemente. Apesar do programa parecer interessante, estava atrasado e agora que a chuva tinha parado, era boa altura para sair. Atirei algumas moedas para cima da mesa que cobriam a despesa, baixei a cabeça em sinal de cumprimento ao Senhor António e saí.

Continuando a andar pelo passeio, vi ao longe um prédio apenas de dois andares. Numa das suas varandas estava uma bela moça, que apresentava um bonito vestido branco com grandes pintas vermelhas, era a Helena, a minha paixão. Sorriu para mim e entrou dentro de casa, acelarei o passo e nem sequer prestei atenção a uma grave discussão que se estava a passar numa sala de jogos próximo da entrada da casa dela. Os barulhos das maquinas de jogos desapareciam com a imagem da Helena a abrir-me a porta. Entrei na porta de casa dela, enquanto me puxava a mão para dentro de casa. A sua sala era simples, com pouca mobilia e sempre arrumada. O seu toque feminino fazia a casa sinceramente agradável, tornando vergonhosa a minha toca de pedaços de piza em cima dos moveis e roupa espalhada pelo chão. Uma mesa central tinha uma jarra com rosas vermelhas e um antigo gira-discos. Levando-me para perto da mesa, tirou uma das rosas do jarro que usou para prender o seu cabelo castanho e liso, atrás da cabeça. Os seus olhos cor de mel brilhavam ao olhar para mim. Mordendo o lábio inferior, ligou o gira-discos que começou a produzir um tango. Chegou-se ao pé de mim e levando os seus lábios junto aos meus ouvidos, sussurrou-me “Vamos Dançar”. Apesar de não saber bem dançar tango, toda aquela sensualidade de Helena levou-me a um estado de paixão profunda, que me fez compreender esta mui sensual dança. O tempo deixou de ser tempo, a música deixou de ser música, tudo aquilo se tornou num local onde a única coisa que se sentia era o amor. A dança não era suave, mas era de um jeito mexido que acelerava o coração. O som era apaixonante e a Helena a corrente que me ligava a isso mesmo.

“Um dia, não é apenas mais um dia”, concluí eu.

João Pais

Palavras captadas no exercício: Comboio, Carros, Transito, acidente, ambulancia, relogio, atraso, sinos, telefone, riso, felicidade, criança, chuva, tempestade, sapo, vento, mar, praia, flippers, sala de jogos, diversão, tango, dança, sensualidade, paixão

1 comentário:

Fernando José Rodrigues disse...

Muito bom, João: domínio do Português (essencial), enquadramento rítmico da acção, com atenção aos detalhes que enriquecem uma narrativa, fluência descritiva.
Temos escrita, estou a ver!
Assim se forma e cresce um escritor.
Parabéns.
fjr