quarta-feira, 28 de novembro de 2007

D. Pedro e José

Sob um sol impiedoso avistamos duas figuras distintas, a cavalo.
D. Pedro, nobre e majestoso cavalgava um imponente cavalo negro. Seguiam confiantes na sua linhagem, de nariz (ou focinho) no ar, conscientes da sua missão e indiferentes ao clima terrivelmente seco. D. Pedro, na sua armadura de ferro reluzente seguia direito que nem um fuso, com uma mão segurando firmemente as rédeas do seu magnífico cavalo e a outra empunhando a lança que muito pesava. Parecia emanar coragem e orgulho, força e determinação e mantinha o olhar pregado bem longe, no horizonte, possivelmente no seu destino longínquo.
Ao seu lado, José, pobre servo que por aqueles montes áridos arrastava o seu burro a custo de algumas chicotadas, parecia prestes a desfalecer. Gotas de suor escorriam-lhe na pele escura, gretada, tisnada pelo Sol e parecia menos determinado que o seu amo. O rubicundo José lá seguia no seu jumento e a sua presença ali era meramente determinada pela obrigação do cumprimento de um dever. As moscas incomodavam-no ligeiramente, apesar de já há algumas horas o molestarem sem descanso. De quando em quando, agitava-se e afastava-as mas as sacanas logo voltavam, bem mais chatas que antes. De vez em quando também, sacava do termo e bebia um golo de aguardente, que sempre lhe dava algum ânimo.

Aquela demanda prolongava-se no que parecia ao pobre servo uma eternidade, de tal maneira que quase esquecera o motivo que levara o amo a reclamar os seus humildes serviços. Recordava vagamente a menção de uma antiga herança de família roubada por um ingrato hóspede, mas apenas isso. Divagavam por aquelas terras há tanto tempo que José já não poderia dizer com certeza se a sua jornada durava meses, se anos. D. Pedro parecia não se importar com aquela vida de peregrino e as condições e perigos a que estavam sujeitos e continuava sempre, embora José não soubesse exactamente o quão optimista o senhor se encontrava. D. Pedro nada partilhava com o servo a não ser aquele silêncio entrecortado por um relinchar ocasional do seu corcel. Era altivo e frio, completamente convencido da sua superioridade. José, no entanto, atrevia-se a julgá-lo ridículo, sempre enfiado naquela incómoda armadura que já nem se usava, e para o cúmulo, segurando uma pesada lança, como se receasse um ataque a todo o segundo.

Ouviram os sinais da discussão na curva seguinte a estes devaneios de José. O calor era tanto que distorcia a paisagem e os três homens que discutiam furiosamente. José calculou o perigo mas não podia virar as costas ao seu senhor, por isso limitou-se a avançar vagarosamente, os olhos presos no horizonte, tal como o seu amo, a fim de evitar contacto visual com os desconhecidos.

Os estranhos só deram pela sua presença alguns segundos depois de tão embrenhados estavam na sua discussão. Levantaram os olhos na direcção dos dois peregrinos calaram-se repentinamente. A face de um deles distorceu-se num esgar de malvadez. José cruzou, inadvertidamente, o seu olhar com o dele nesse momento e soube que eram presas. Presas fáceis, visto o isolamento do lugar e a disparidade numérica.

D. Pedro parecia em nada reparar. Quando o primeiro homem, um gigante louro com um ar particularmente feroz, dirigiu o seu cavalo para ele, D. Pedro nem pestanejou e ocorreu a José que o sol o tivesse deixado senil. No último segundo, porém, julgou vislumbrar-lhe no olhar um segundo de terror… Com um simples empurrão o gigante derrubou-o do cavalo. A armadura de D. Pedro e a lança que entretanto largara fizeram um ruído metálico ao embater no solo. Aquele que parecia um nobre cavaleiro, debatia-se agora desesperadamente para se pôr de pé, mas a pesada armadura e o cansaço de tantos dias não lho permitiram.

José, congelado apesar do calor infernal, viu o gigante louro avançar para si lentamente, tal qual um felino a preparar o ataque, precedido pelos seus dois companheiros. A única solução que lhe ocorria era louca e improvável mas José engoliu o medo e decidiu tentar. Correu para a lança pousada junto do patético D. Pedro e levantou-a do chão, criando uma nuvem de pó imensa em volta.

Os homens estacaram, surpreendidos com a sua ousadia. O não menos surpreendido José aproveitou o momento de surpresa e atacou a tola do gigante com uma valente pancada. O corpo pesado tombou para o lado, a cabeça loura aos pés de José.

Os outros dois trocaram olhares entendidos e avaliaram a situação. Sem armas e com o companheiro inconsciente não tinham tantas possibilidades de vencer e além disso, os dois forasteiros não deviam ter consigo nada por que valesse arriscar. Portanto, os dois cobardes viraram as costas ao seu companheiro inconsciente, a José e a D. Pedro e montaram os respectivos cavalos para desaparecerem num nevoeiro de pó castanho.

Um D. Pedro bastante humilhado soergueu-se do chão com a ajuda do seu servo José.

Os papéis tinham-se invertido apenas por alguns segundos… ou talvez a verdadeira natureza dos dois viajantes tivesse sido revelada nesses instantes. Não obstante, depois deste episódio, nada mudou. A barreira de silêncio continuou, os seus alicerces tão firmes quanto antes.

A demanda prosseguiu então sob o mesmo sol impiedoso, sem desfecho à vista.



Nota: O meu objectivo era criar personagens modeladas e com características tanto físicas como psicológicas diferentes, quase completamente opostas. Embora não goste da história (desgosto, particularmente, do desfecho) senti-me compelida a publicar algo, a mostrar resultados…

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