quinta-feira, 29 de novembro de 2007

O Guardador de Memórias

Caminhava apressado pela praceta, ignorando o mundo que se passava à sua volta. Carlos Peixoto, severo homem de setenta e dois anos, apresentava uma gabardina negra, que concebia ao seu andar um aspecto fúnebre e melancólico. As suas passadas, lúgubres e exactas, mostravam uma austeridade que marcava a sua personalidade intrinsecamente.


A cara de Carlos, com grossas rugas, desvendava a anatomia de um homem cansado, farto e vivido. Calçava os mesmos sapatos pretos há 20 anos que, resistindo ao tempo, brilhavam com aquele Sol de Inverno, mostrando a mesma frieza que do homem que os calçava.


O frio daquela manhã de Fevereiro lambia a cara de Carlos Peixoto, fazendo com que aquela aragem se tornasse uma chave, que lhe abria os mais secretos sentimentos.


Perto dele, sentado naquele chão frio típico da calçada portuguesa, um moribundo qualquer tocava uma solene música no seu estragado saxofone. Aquela melodia despertava lembranças a Carlos de tempos que não viveu, de momentos que desejava ter assistido, de horas que gostava de ter passado. O seu estado era simplesmente de insatisfação, pois se sobreviveu estes 72 anos, não tinha passado mesmo disso: sobreviver e não viver. A sua vida tinha sido recheada de contratempos à sua felicidade e de um profundo adormecimento da sua própria existência. Queria ter vivido! Mas não o fez.


A cada passada que dava, toda aquela praceta se tornava distante e impessoal. Todos os prédios que rodeavam aquele amplo espaço, representavam um punhado de vidas, um punhado de sentimentos e um punhado de experiências que Carlos não tinha vivido. Sentia raiva ao olhar para a criança numa das varandas a brincar com o seu pai, sentia tristeza ao ver uma idosa numa outra varanda, a levar uma chávena fumegante aos seus lábios de amante, de mãe e de avó. Todas aquelas pessoas representavam, de certa forma, uma fracção de Carlos, um sentimento ou mesmo um desejo. Pois eram elas que detinham só para si, todos os sentimentos que ele nunca teve ou teria.


Apressando o passo, fazendo com que o vento rasgasse a sua pele estalada pelo tempo, encontrou o seu pequeno prédio de dois andares, onde ele era o único residente. Era bastante estreito aquele edifício, com a porta de madeira pintada de verde e uma campainha onde ninguém tocava. As escadas, com uma carpete escarlate, apenas eram pisadas por Carlos Peixoto, que se esforçava para não a estragar, na ansia de um dia, quando recebesse uma visita, ela estar intacta e apresentável. “Sei que ninguém virá, mas se vierem...”, pensava. Percorrendo o fundo do seu bolso direito, encontrou a pequena chave que abria a porta daquela toca infeliz. Abrindo a porta, entrou dentro de uma minúscula sala. Um tapete redondo demarcava os limites daquela divisão, com um cadeirão de veludo castanho ao centro. Ao lado, encontrava-se uma mesinha redonda, apenas com um candeeiro, uma pequena tesoura, um grande livro de couro negro com letras douradas, onde se podia ler “Memoirs”. Carlos tirou a sua gabardina e colocou-a no bengaleiro próximo da porta por onde entrara. Do seu bolso traseiro, retirou um jornal enrolado e dobrado que o acompanhou todo o dia. Levou-o até ao cadeirão, onde se sentou suavemente. Da mesinha redonda, retirou a pequena tesoura e desfolhou o jornal. Indo até à página 66, conseguiu ler as grandes letras “Obituário”. Cuidadosamente, escolheu o anuncio que mais lhe tinha suscitado atenção, “Amado pelos filhos e amado pela sua mulher. José Sousa foi um homem feliz e ficará para sempre na memória de quem o ama”. Recortou cuidadosamente aquele quadrado, reservando-o de lado e fechando o jornal, colocando-o em cima da mesinha. Pegou no pesado livro e abriu-o em cima das pernas, relembrando inúmeras caras que ao longo dos anos tinha arquivado naquele grosso álbum. Achou um espaço para a sua nova lembrança e colou-a junto de outras caras apenas sorridentes e felizes.


Fechou os olhos de satisfação e, aos poucos, tentou recordar as lembranças daquele homem que não era ele. Viveu, na escuridão da sua sala, a vida daquela criatura achada no Obituário do jornal local. Assim sobrevivia Carlos Peixoto, um homem que era o Guardador de Memórias.


João Pais,
Um não Guardador de Memórias

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