quarta-feira, 7 de novembro de 2007

Madalena de Jesus


Os badalos da igreja, acompanhados pelo acender dos círios do Santo Altar, assinalaram o início de uma pequena cerimónia que eu pedi em honra de Madalena de Jesus. Fechei os olhos e invadido por aquele aroma de parafina queimada, recordei os momentos que passei com aquela mulher, aquele ser perdido no anonimato da sua própria existência. Ela não era ninguém, mas para mim ela era tudo. As outras mulheres que passavam por ela, preferiam olhar para o chão que ferir os seus olhos com criatura tão baixa. Mas ela para mim não era apenas uma mulher, mas a junção delas todas numa existência una.

A voz do padre interrompeu aquele meu estado profundo de reflexão e meditação. A leitura daquele texto sagrado e fúnebre parecia ser lido sem sentimento algum, como que se aquele roliço padre - careca e com hálito a vinho – tivesse lido no cadáver de Madalena toda a sua biografia de baixo nível, de miséria e de constante venda do seu corpo. Apesar disso tudo, Madalena era religiosa e esta minha acção em preparar-lhe uma missa em que só eu estava presente era, acima de tudo, a realização de um desejo seu e a melhor maneira de honrar a sua existência. Lembro-me bem o irónico que eu achava quando as palavras “Deus” e “pecado” eram proferidas por ela, principalmente quando usava aquelas mini-saias rosa, tops azuis e um forte batom vermelho de cheiro a morango artificial. O cabelo dela, loiro descolorado, tinha também um cheiro característico a café vindo de um sabonete barato comprado numa loja qualquer da baixa. A isso tudo se juntava um cheiro forte a chocolate que sempre acompanhava, misteriosamente, Madalena de Jesus. Ela comia constantemente esse doce para compensar a sua infelicidade e constantes contrariedades que a vida lhe apresentava. Esse conjunto de cheiros que eram característicos dela, encantavam-me. Nas minhas narinas todos esses aromas se juntavam. E, como um verdadeiro alquimista, eu juntava todas essas essências na minha mente e o resultado era único, o resultado era o cheiro de Madalena. “Cheiras tão bem...”, confessei-lhe eu uma vez. Ela riu-se e mandou-me calar, como que achando que essa afirmação era das mais estúpidas que tinha ouvido. Para mim não era e é por isso que ainda hoje guardo no meu bolso esquerdo um lenço esquecido por ela em cima da mesa do café onde habitualmente nos encontrávamos.

Porém uma dia isso tudo mudou. Horas passaram e eu esperava por Madalena de Jesus no “nosso” café. As minhas narinas apuradas não sentiam a essência de Madelena, mas apenas o cheiro a desinfectante de limão que era usado para limpar o chão daquele café. O som das cadeiras que se arrastavam com o chegar de mais pessoas irritava-me e todas aquelas vozes fizeram-me zonzo e confuso com aquela eterna espera. “Talvez esteja atrasada”. Não estava. Madalena de Jesus tinha-se atirado na noite anterior do prédio onde vivia, desrespeitando o que para mim era mais sagrado: o seu corpo, o seu aroma. A minha revolta resultou numa raiva e num ódio intenso àquela mulher que era o meu altar. Era a ela que confessava os meus pecados e era ela a minha religião, não aquele padre de voz monocórdica que lia uma missa sem sentido.

Este amor-ódio que passei a sentir por Madalena de Jesus, apenas me tornava um ser mais apaixonado por esta teia de mistérios femininos guardados na alma perdida dela. Madalena partira, a sua alma e as suas memórias partiram, mas o seu aroma ficara. Não só no lenço deixado por ela – que ao longo do tempo se iria perdendo nos meus bolsos sem fundo para cheiros -, mas também na minha mente que catalogava cada sensação que Madalena me tinha trazido, associada a um aroma, a uma essência do cerne de Madalena.


A Madalena de Jesus, minha alma.

João Pais

(in Oficina da Escrita Criativa, reunião acerca dos aromas)