Espero também que o próximo ano traga mais movimento e actividade a este grupo e a este blog.
Cumprimentos,
João Pais
Projecto do Professor Fernando José Rodrigues, Escola Secundária Francisco Rodrigues Lobo, em Leiria. Público-Alvo: Alunos,Professores e Funcionários interessados em procurar, dentro de si mesmos, a imaginação de contar histórias, em aprofundar o que se vê e o que se poderá ver para além do mundo exterior, em descobrir que num grão de areia pode estar um mundo infinito.
O Estilo Literário
Caminhava apressado pela praceta, ignorando o mundo que se passava à sua volta. Carlos Peixoto, severo homem de setenta e dois anos, apresentava uma gabardina negra, que concebia ao seu andar um aspecto fúnebre e melancólico. As suas passadas, lúgubres e exactas, mostravam uma austeridade que marcava a sua personalidade intrinsecamente.
A cara de Carlos, com grossas rugas, desvendava a anatomia de um homem cansado, farto e vivido. Calçava os mesmos sapatos pretos há 20 anos que, resistindo ao tempo, brilhavam com aquele Sol de Inverno, mostrando a mesma frieza que do homem que os calçava.
O frio daquela manhã de Fevereiro lambia a cara de Carlos Peixoto, fazendo com que aquela aragem se tornasse uma chave, que lhe abria os mais secretos sentimentos.
Perto dele, sentado naquele chão frio típico da calçada portuguesa, um moribundo qualquer tocava uma solene música no seu estragado saxofone. Aquela melodia despertava lembranças a Carlos de tempos que não viveu, de momentos que desejava ter assistido, de horas que gostava de ter passado. O seu estado era simplesmente de insatisfação, pois se sobreviveu estes 72 anos, não tinha passado mesmo disso: sobreviver e não viver. A sua vida tinha sido recheada de contratempos à sua felicidade e de um profundo adormecimento da sua própria existência. Queria ter vivido! Mas não o fez.
A cada passada que dava, toda aquela praceta se tornava distante e impessoal. Todos os prédios que rodeavam aquele amplo espaço, representavam um punhado de vidas, um punhado de sentimentos e um punhado de experiências que Carlos não tinha vivido. Sentia raiva ao olhar para a criança numa das varandas a brincar com o seu pai, sentia tristeza ao ver uma idosa numa outra varanda, a levar uma chávena fumegante aos seus lábios de amante, de mãe e de avó. Todas aquelas pessoas representavam, de certa forma, uma fracção de Carlos, um sentimento ou mesmo um desejo. Pois eram elas que detinham só para si, todos os sentimentos que ele nunca teve ou teria.
Apressando o passo, fazendo com que o vento rasgasse a sua pele estalada pelo tempo, encontrou o seu pequeno prédio de dois andares, onde ele era o único residente. Era bastante estreito aquele edifício, com a porta de madeira pintada de verde e uma campainha onde ninguém tocava. As escadas, com uma carpete escarlate, apenas eram pisadas por Carlos Peixoto, que se esforçava para não a estragar, na ansia de um dia, quando recebesse uma visita, ela estar intacta e apresentável. “Sei que ninguém virá, mas se vierem...”, pensava. Percorrendo o fundo do seu bolso direito, encontrou a pequena chave que abria a porta daquela toca infeliz. Abrindo a porta, entrou dentro de uma minúscula sala. Um tapete redondo demarcava os limites daquela divisão, com um cadeirão de veludo castanho ao centro. Ao lado, encontrava-se uma mesinha redonda, apenas com um candeeiro, uma pequena tesoura, um grande livro de couro negro com letras douradas, onde se podia ler “Memoirs”. Carlos tirou a sua gabardina e colocou-a no bengaleiro próximo da porta por onde entrara. Do seu bolso traseiro, retirou um jornal enrolado e dobrado que o acompanhou todo o dia. Levou-o até ao cadeirão, onde se sentou suavemente. Da mesinha redonda, retirou a pequena tesoura e desfolhou o jornal. Indo até à página 66, conseguiu ler as grandes letras “Obituário”. Cuidadosamente, escolheu o anuncio que mais lhe tinha suscitado atenção, “Amado pelos filhos e amado pela sua mulher. José Sousa foi um homem feliz e ficará para sempre na memória de quem o ama”. Recortou cuidadosamente aquele quadrado, reservando-o de lado e fechando o jornal, colocando-o em cima da mesinha. Pegou no pesado livro e abriu-o em cima das pernas, relembrando inúmeras caras que ao longo dos anos tinha arquivado naquele grosso álbum. Achou um espaço para a sua nova lembrança e colou-a junto de outras caras apenas sorridentes e felizes.
Fechou os olhos de satisfação e, aos poucos, tentou recordar as lembranças daquele homem que não era ele. Viveu, na escuridão da sua sala, a vida daquela criatura achada no Obituário do jornal local. Assim sobrevivia Carlos Peixoto, um homem que era o Guardador de Memórias.
Sob um sol impiedoso avistamos duas figuras distintas, a cavalo.
D. Pedro, nobre e majestoso cavalgava um imponente cavalo negro. Seguiam confiantes na sua linhagem, de nariz (ou focinho) no ar, conscientes da sua missão e indiferentes ao clima terrivelmente seco. D. Pedro, na sua armadura de ferro reluzente seguia direito que nem um fuso, com uma mão segurando firmemente as rédeas do seu magnífico cavalo e a outra empunhando a lança que muito pesava. Parecia emanar coragem e orgulho, força e determinação e mantinha o olhar pregado bem longe, no horizonte, possivelmente no seu destino longínquo.
Ao seu lado, José, pobre servo que por aqueles montes áridos arrastava o seu burro a custo de algumas chicotadas, parecia prestes a desfalecer. Gotas de suor escorriam-lhe na pele escura, gretada, tisnada pelo Sol e parecia menos determinado que o seu amo. O rubicundo José lá seguia no seu jumento e a sua presença ali era meramente determinada pela obrigação do cumprimento de um dever. As moscas incomodavam-no ligeiramente, apesar de já há algumas horas o molestarem sem descanso. De quando em quando, agitava-se e afastava-as mas as sacanas logo voltavam, bem mais chatas que antes. De vez em quando também, sacava do termo e bebia um golo de aguardente, que sempre lhe dava algum ânimo.
Aquela demanda prolongava-se no que parecia ao pobre servo uma eternidade, de tal maneira que quase esquecera o motivo que levara o amo a reclamar os seus humildes serviços. Recordava vagamente a menção de uma antiga herança de família roubada por um ingrato hóspede, mas apenas isso. Divagavam por aquelas terras há tanto tempo que José já não poderia dizer com certeza se a sua jornada durava meses, se anos. D. Pedro parecia não se importar com aquela vida de peregrino e as condições e perigos a que estavam sujeitos e continuava sempre, embora José não soubesse exactamente o quão optimista o senhor se encontrava. D. Pedro nada partilhava com o servo a não ser aquele silêncio entrecortado por um relinchar ocasional do seu corcel. Era altivo e frio, completamente convencido da sua superioridade. José, no entanto, atrevia-se a julgá-lo ridículo, sempre enfiado naquela incómoda armadura que já nem se usava, e para o cúmulo, segurando uma pesada lança, como se receasse um ataque a todo o segundo.
Ouviram os sinais da discussão na curva seguinte a estes devaneios de José. O calor era tanto que distorcia a paisagem e os três homens que discutiam furiosamente. José calculou o perigo mas não podia virar as costas ao seu senhor, por isso limitou-se a avançar vagarosamente, os olhos presos no horizonte, tal como o seu amo, a fim de evitar contacto visual com os desconhecidos.
Os estranhos só deram pela sua presença alguns segundos depois de tão embrenhados estavam na sua discussão. Levantaram os olhos na direcção dos dois peregrinos calaram-se repentinamente. A face de um deles distorceu-se num esgar de malvadez. José cruzou, inadvertidamente, o seu olhar com o dele nesse momento e soube que eram presas. Presas fáceis, visto o isolamento do lugar e a disparidade numérica.
D. Pedro parecia em nada reparar. Quando o primeiro homem, um gigante louro com um ar particularmente feroz, dirigiu o seu cavalo para ele, D. Pedro nem pestanejou e ocorreu a José que o sol o tivesse deixado senil. No último segundo, porém, julgou vislumbrar-lhe no olhar um segundo de terror… Com um simples empurrão o gigante derrubou-o do cavalo. A armadura de D. Pedro e a lança que entretanto largara fizeram um ruído metálico ao embater no solo. Aquele que parecia um nobre cavaleiro, debatia-se agora desesperadamente para se pôr de pé, mas a pesada armadura e o cansaço de tantos dias não lho permitiram.
José, congelado apesar do calor infernal, viu o gigante louro avançar para si lentamente, tal qual um felino a preparar o ataque, precedido pelos seus dois companheiros. A única solução que lhe ocorria era louca e improvável mas José engoliu o medo e decidiu tentar. Correu para a lança pousada junto do patético D. Pedro e levantou-a do chão, criando uma nuvem de pó imensa em volta.
Os homens estacaram, surpreendidos com a sua ousadia. O não menos surpreendido José aproveitou o momento de surpresa e atacou a tola do gigante com uma valente pancada. O corpo pesado tombou para o lado, a cabeça loura aos pés de José.
Os outros dois trocaram olhares entendidos e avaliaram a situação. Sem armas e com o companheiro inconsciente não tinham tantas possibilidades de vencer e além disso, os dois forasteiros não deviam ter consigo nada por que valesse arriscar. Portanto, os dois cobardes viraram as costas ao seu companheiro inconsciente, a José e a D. Pedro e montaram os respectivos cavalos para desaparecerem num nevoeiro de pó castanho.
Um D. Pedro bastante humilhado soergueu-se do chão com a ajuda do seu servo José.
Os papéis tinham-se invertido apenas por alguns segundos… ou talvez a verdadeira natureza dos dois viajantes tivesse sido revelada nesses instantes. Não obstante, depois deste episódio, nada mudou. A barreira de silêncio continuou, os seus alicerces tão firmes quanto antes.
A demanda prosseguiu então sob o mesmo sol impiedoso, sem desfecho à vista.
Nota: O meu objectivo era criar personagens modeladas e com características tanto físicas como psicológicas diferentes, quase completamente opostas. Embora não goste da história (desgosto, particularmente, do desfecho) senti-me compelida a publicar algo, a mostrar resultados…
O quarto era iluminado apenas por uma lâmpada em cima da cómoda. Benedita de Queirós estava de pé em frente a esse móvel antigo corroído pelo tempo. Era composto por três grandes gavetões, cada um deles recheado não de objectos mundanos, mas de memórias de uma vida. A viúva contemplou o seu rosto no redondo espelho pendurado na parede caiada e na superfície apenas estava reflectida uma Benedita cansada e indiferente.
“Como mudaste Benedita”, pensou. A cómoda era de madeira escura e tinha um padrão com rosas ao longo de todo o tampo. Naquela noite, Benedita quis senti-lo. Fechou os olhos e com os seus dedos rugosos, sentiu a textura daquela áspera madeira, e identificou – uma a uma – todas aquelas rosas que para ela, tinham o poder de encerrar em si o verdadeiro significado da vida. “Todos nós somos Rosas. Em nós, temos escondida a essência para brotar a mais bela da flor escarlate”, sussurrou-lhe uma voz.
Abrindo os olhos levou ambas as mãos ao topo da sua cabeça, penetrando os seus dedos na sua cabeleira branca e suave. Os cabelos aveludados passavam entre os dedos de forma subtil, fazendo com que Benedita se arrepiasse com o passar da sua cabeleira nas rugas das suas mãos. Queria decorar o que sentia ao tocar no seu cabelo, queria mostrar ao seu tacto sinais de prazer, de caricias que já não recebia, de atenção que já não tinha. Inspirando fundo, sentiu o frio do quarto a invadir os seus pulmões e Benedita sabia que cada respiração, cada inspiração daquele arrepiante ar, lhe tirava apenas o folgo de viver.
O respirar da viuva Queirós tornou-se acelerado. O frio tornou-se intenso. Um estranho vento percorreu todo o seu corpo, fazendo com que todos os poros de sua pele se arrepiassem. Os seus pés descalços, bem juntos, sentiam um chão desconhecido de pedra irregular, que lhe sugava o calor de todo o seu corpo. Benedita não sabia onde estava, apenas que já não se encontrava no seu quarto. Como se tinha formado uma estranha bruma negra, ela não conseguia ver nada ao seu redor. Esticou ambos os seus braços, sentido o que estava em seu redor. Benedita sentiu então a parede, sentiu-a com as mãos e com todo o seu corpo. Juntando-se a ela, conseguiu percorrer a sua rugosa textura que se assemelhava bastante à sua pele. Com a cara, absorveu aquele frio húmido que preenchia toda aquela parede, transmitindo a Benedita o sentimento de vazio, de tristeza e de completa infelicidade.
“Pois é no verdadeiro vazio que encontrarás o elixir da felicidade”, sussurrou-lhe novamente a voz. Benedita de Queirós não compreendia, o desespero levou-a a gritar bem alto, sentido um forte rasgar na sua garganta em cada berro seu. Como que em resposta a este berro, qual grito tribal, apareceu-lhe à sua frente um homem com os seus 30 anos, vestido de fato negro, camisa vermelha e gravata negra, segurando nas suas mãos uma bela rosa escarlate que detinha o poder de iluminar ambas as criaturas, naquele estranho lugar. “Procura sempre no teu interior as respostas que procuras. Lá, acharás a chave para abrir os portais do amor e da paixão”, disse o homem. Benedita sentiu um aperto no peito, aquele homem com cabelo negro e cara fina, com uma voz grave e profunda que lhe tocava no coração, era António de Queirós, o seu falecido marido. Correndo para os seus braços, encaixou a sua testa no peito de António, sentindo as caricias que já tinha esquecido. Começando uma dança sem musica, ambos dançaram sob o signo da rosa, que nada é mais que a essência de cada Homem.
Benedita elevou a sua mão direita à cara do seu amado, sentindo a sua barba picar nas suas mãos, experimentando os lábios carnudos e húmidos de António e sentido os seus grossos cabelos negros por entre os seus dedos. Nesse momento, Benedita abandona todo seu sentido de tristeza e infelicidade, deixando o seu corpo repousado junto daquela velha cómoda e seguindo António de Queirós naquela dança, que a acompanhará pela a eternidade.
Que todos descubram a vossa Rosa interior,
João Pais
(in Oficina da Escrita Criativa, reunião acerca do tacto)
Os badalos da igreja, acompanhados pelo acender dos círios do Santo Altar, assinalaram o início de uma pequena cerimónia que eu pedi em honra de Madalena de Jesus. Fechei os olhos e invadido por aquele aroma de parafina queimada, recordei os momentos que passei com aquela mulher, aquele ser perdido no anonimato da sua própria existência. Ela não era ninguém, mas para mim ela era tudo. As outras mulheres que passavam por ela, preferiam olhar para o chão que ferir os seus olhos com criatura tão baixa. Mas ela para mim não era apenas uma mulher, mas a junção delas todas numa existência una.
A voz do padre interrompeu aquele meu estado profundo de reflexão e meditação. A leitura daquele texto sagrado e fúnebre parecia ser lido sem sentimento algum, como que se aquele roliço padre - careca e com hálito a vinho – tivesse lido no cadáver de Madalena toda a sua biografia de baixo nível, de miséria e de constante venda do seu corpo. Apesar disso tudo, Madalena era religiosa e esta minha acção em preparar-lhe uma missa em que só eu estava presente era, acima de tudo, a realização de um desejo seu e a melhor maneira de honrar a sua existência. Lembro-me bem o irónico que eu achava quando as palavras “Deus” e “pecado” eram proferidas por ela, principalmente quando usava aquelas mini-saias rosa, tops azuis e um forte batom vermelho de cheiro a morango artificial. O cabelo dela, loiro descolorado, tinha também um cheiro característico a café vindo de um sabonete barato comprado numa loja qualquer da baixa. A isso tudo se juntava um cheiro forte a chocolate que sempre acompanhava, misteriosamente, Madalena de Jesus. Ela comia constantemente esse doce para compensar a sua infelicidade e constantes contrariedades que a vida lhe apresentava. Esse conjunto de cheiros que eram característicos dela, encantavam-me. Nas minhas narinas todos esses aromas se juntavam. E, como um verdadeiro alquimista, eu juntava todas essas essências na minha mente e o resultado era único, o resultado era o cheiro de Madalena. “Cheiras tão bem...”, confessei-lhe eu uma vez. Ela riu-se e mandou-me calar, como que achando que essa afirmação era das mais estúpidas que tinha ouvido. Para mim não era e é por isso que ainda hoje guardo no meu bolso esquerdo um lenço esquecido por ela em cima da mesa do café onde habitualmente nos encontrávamos.
Porém uma dia isso tudo mudou. Horas passaram e eu esperava por Madalena de Jesus no “nosso” café. As minhas narinas apuradas não sentiam a essência de Madelena, mas apenas o cheiro a desinfectante de limão que era usado para limpar o chão daquele café. O som das cadeiras que se arrastavam com o chegar de mais pessoas irritava-me e todas aquelas vozes fizeram-me zonzo e confuso com aquela eterna espera. “Talvez esteja atrasada”. Não estava. Madalena de Jesus tinha-se atirado na noite anterior do prédio onde vivia, desrespeitando o que para mim era mais sagrado: o seu corpo, o seu aroma. A minha revolta resultou numa raiva e num ódio intenso àquela mulher que era o meu altar. Era a ela que confessava os meus pecados e era ela a minha religião, não aquele padre de voz monocórdica que lia uma missa sem sentido.
Este amor-ódio que passei a sentir por Madalena de Jesus, apenas me tornava um ser mais apaixonado por esta teia de mistérios femininos guardados na alma perdida dela. Madalena partira, a sua alma e as suas memórias partiram, mas o seu aroma ficara. Não só no lenço deixado por ela – que ao longo do tempo se iria perdendo nos meus bolsos sem fundo para cheiros -, mas também na minha mente que catalogava cada sensação que Madalena me tinha trazido, associada a um aroma, a uma essência do cerne de Madalena.
A Madalena de Jesus, minha alma.
João Pais
(in Oficina da Escrita Criativa, reunião acerca dos aromas)
O Sol entrou pela clarabóia do meu quarto, que se localizava num sótão qualquer, numa cidade sem importância a referir. Aqueles raios que despertavam as partículas de pó dos meus moveis, fizeram também com que instintivamente os meus olhos se abrissem para mais um dia de existência mundana, mais um dia normal.
Levantei-me da cama, lançando para longe os lençóis que rudemente tapavam o velho colchão. O sótão era claustrofóbico, com apenas um compartimento que servia tanto de sala, como de quarto ou mesmo cozinha. Espreguiçando-me, peguei numa fatia de piza esquecida em cima da mesa redonda e dei-lhe uma dentada, ao mesmo tempo que me sentei na única cadeira disponível nesta pseudo casa. Com um olho fechado devido à agressividade do Sol, olhei para rua para ver a roupagem das pessoas que passavam. “Estará frio?”, questionei-me.
Ao longe, o comboio marcava um compasso sonoro que, como que me hipnotizando, fazia com que todas as minhas atenções se dirigissem para aquela grande máquina de barulho contínuo. Não obstante, o meu ligeiro estado hipnótico depressa foi interrompido pelo barulho dos carros, que ano após ano, vieram alterar a música urbana da minha zona. Um e outro acidente pontual, acompanhados com velozes ambulâncias, apenas fazem com que esta pauta musical seja preenchida cada vez mais, tornando-se por vezes quase impossível captar a essência musical do nosso Mundo sem o Homem. Esses acidentes arrepiam-me, pois já não é a primeira vez que perco alguém próximo, como resultado desta massiva industrialização. Abanando a cabeça para tentar expulsar estas ideias negativas, olho para o meu relógio de parede que marcam as 10 horas. “Bolas, já é tarde”.
Vesti rapidamente uma camisola que estava em cima de um monte de roupa que, sinceramente, não sabia ao certo de estava suja ou lavada. “Não importa”. Enfiando a mão nesse mesmo monte de roupa, puxei por umas calças que vesti rapidamente. O casaco comprido estava deixado à entrada, coloquei-o e abri a porta que gemeu gravemente e depois saí.
Ao arrastar a porta de entrada do meu prédio, uma lufada de ar gelado bateu contra a minha cara e como resposta a isso, aconcheguei o meu casaco e retirei do seu bolso o meu cachecol. Isabel, uma vizinha minha, estava a chegar ao mesmo tempo que eu saia. Delicadamente, abri-lhe a porta. Ela vinha ao telefone e a rir histericamente, os seus risos sempre foram altos demais, mas como tinha acabado de acordar pareciam verdadeiras flechas directas à minha cabeça. Trazia um carrinho de bebé e um saco de compras. A conversa parecia ser realmente interessante, pois nem ligava aos berros do seu filhinho que conseguiam ser mais agudos do que as gargalhadas da sua mãe. “Quem sai aos seus...” e ri-me.
O dia estava exactamente como eu gostava. Um sol agradável, acompanhado por um frio de meter o queixo a tremer. Decidi passar pelo parque para ver os primeiros sinais do Inverno na Natureza. Gostava de ver aquela natureza morta, melancólica, que era realçada com pequenos arbustos de azevinho, com as suas belas bagas vermelhas que eram realçadas pela humidade existente no ar.
Entre os arbustos existia escondido um pequeno lago com uma estranha folhagem verde. Na sua beira, estava uma criança por volta dos sete anos, que perseguia grandes sapos que coaxavam fortemente. Eram uns seis e saltavam fugindo do jovem rapaz, como que brincando com ele. O miúdo fazia um som estranho, parecia que estava a imitar o coaxar dos sapos. Criou-se ali uma curiosa linguagem que não era mais que um delicioso e ingénuo cântico que me deu prazer em observar.
O pequeno começou agora a fugir, não dos sapos, mas da chuva que começou de forma repentina quebrando tal belo jogo. “Que chatice, odeio chuva!” pensei. Comecei a correr saindo do parque, em direcção a uns prédios localizados mesmo em frente. Essa série de prédios antigos eram acimados com pombas que pareciam nem notar esta forte chuva. Em baixo vi que o café que costumo frequentar estava aberto, e o Senhor António acenava para mim, chamando-me. “Corra, Corra!”, gritou ele. Entrei no café, sacudindo a cabeça e colocando o meu casaco pendurado no bengaleiro à entrada. O café era pequeno, com não mais de 10 mesas, tinha um pequeno balcão onde a mulher o Senhor António estava sempre ora a servir, ora a ver mais um programa da National Geographic que tanto gostava! Pedi um chocolate quente com canela, uma especialidade do dono do café. Olhei para a antiga televisão que estava perto do balcão e vi que estava a passar um programa sobre uma espécie marinha qualquer. A Dona Maria era ligeiramente surda o que fazia com que a televisão tivesse sempre o seu som demasiado alto. O som do mar do programa era estrondoso naquele minúsculo café e fazia com que os pomposos copos de cristal numa prateleira em cima vibrassem constantemente. Apesar do programa parecer interessante, estava atrasado e agora que a chuva tinha parado, era boa altura para sair. Atirei algumas moedas para cima da mesa que cobriam a despesa, baixei a cabeça em sinal de cumprimento ao Senhor António e saí.
Continuando a andar pelo passeio, vi ao longe um prédio apenas de dois andares. Numa das suas varandas estava uma bela moça, que apresentava um bonito vestido branco com grandes pintas vermelhas, era a Helena, a minha paixão. Sorriu para mim e entrou dentro de casa, acelarei o passo e nem sequer prestei atenção a uma grave discussão que se estava a passar numa sala de jogos próximo da entrada da casa dela. Os barulhos das maquinas de jogos desapareciam com a imagem da Helena a abrir-me a porta. Entrei na porta de casa dela, enquanto me puxava a mão para dentro de casa. A sua sala era simples, com pouca mobilia e sempre arrumada. O seu toque feminino fazia a casa sinceramente agradável, tornando vergonhosa a minha toca de pedaços de piza em cima dos moveis e roupa espalhada pelo chão. Uma mesa central tinha uma jarra com rosas vermelhas e um antigo gira-discos. Levando-me para perto da mesa, tirou uma das rosas do jarro que usou para prender o seu cabelo castanho e liso, atrás da cabeça. Os seus olhos cor de mel brilhavam ao olhar para mim. Mordendo o lábio inferior, ligou o gira-discos que começou a produzir um tango. Chegou-se ao pé de mim e levando os seus lábios junto aos meus ouvidos, sussurrou-me “Vamos Dançar”. Apesar de não saber bem dançar tango, toda aquela sensualidade de Helena levou-me a um estado de paixão profunda, que me fez compreender esta mui sensual dança. O tempo deixou de ser tempo, a música deixou de ser música, tudo aquilo se tornou num local onde a única coisa que se sentia era o amor. A dança não era suave, mas era de um jeito mexido que acelerava o coração. O som era apaixonante e a Helena a corrente que me ligava a isso mesmo.
“Um dia, não é apenas mais um dia”, concluí eu.
João Pais
Palavras captadas no exercício: Comboio, Carros, Transito, acidente, ambulancia, relogio, atraso, sinos, telefone, riso, felicidade, criança, chuva, tempestade, sapo, vento, mar, praia, flippers, sala de jogos, diversão, tango, dança, sensualidade, paixão
[A ESCRITA dos SENTIDOS]
Parece que sou o primeiro a fazer esta apresentação! A minha decisão em fazer parte da Oficina de Escrita Criativa apareceu pela necessidade em desenvolver a escrita num duplo sentido. Em primeiro lugar para despertar em mim capacidades inventivas de criação e, por outro lado, na interpretação do real observado. A escrita consegue, na minha opinião, abrir portas bastante interessantes que têm de ser exploradas por nós. Ao escrever, aprendemos a intelectualizar sentimentos, a descrever o vivido e – entre outras caracteristicas várias – a aprender a ler de uma outra perspectiva!
Mas àparte desta introdução, chamo-me João Pais e ando no 12º ano da Escola Secundária Francisco Rodrigues Lobo. Sou um apaixonado pela leitura e também gosto muito de escrever.
Dentro dos meus gostos literários, posso afirmar que sou bastante eclético. Gosto bastante de policiais, principalmente daqueles onde exploram em profundidade as personagens, no seu comportamento social e pessoal. Aprecio também alguns romances, apesar de terem de mostrar alguma audácia para me agradar, pois odeio aquelas histórias recheadas de “clichés”. Gosto muito de romances históricos, pois as pinceladas de verdade que de vez em quando nos apresentam, fazem-nos levar a determinadas épocas e criam em nós um sentimento de mais próximidade com a história em si. Também aprecio livros relacionados com temas filosóficos, mágicos e religiosos, sendo eu um estudante de religiões arcaicas, como o Paganismo.
É quase impossivel dizer todos os meus gostos literários, porque de facto leio livros de todas as categorias, basta entrar na Fnac ou na Bertrand (passa a publicidade).
Não gosto muito de ler livros na praia, pois em primeiro lugar não gosto desse local de massas e depois não aprecio muito ter um livro a estalar cheio de areia entre as folhas. O meu local favorito para ler é na sala ou no quarto! Apesar de ler um livro no exterior também ser agradável quando o tempo assim o permite.
O último livro que li foi o “Pequeno Amigo” da Donna Tartt.
Espero pelas próximas reuniões da Oficina, que decerto nos permitirão desenvolver esta ferramenta primórida que divide a pré-história da história, que é a escrita.
Um abraço,
João Pais